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  • Texto Juliana Monachesi – “Obras de Ficção”

    Obras de ficção

     

    Você acredita nas imagens? Confia naquilo que seus olhos vêem? Quanto tempo costuma dedicar a elas: a cada uma das fotografias, ilustrações, figuras e símbolos que invadem seu cotidiano violentamente, por todos os lados – no celular, na TV, nas embalagens, nos jornais e revistas, no e-mail, na timeline das redes sociais, nos livros, nos museus, nas ruas, nas lojas, no elevador, na sala de espera de qualquer lugar? Dois segundos? Cinco ou dez, se aparentar ser algo interessante? Quanto tempo dura uma imagem? Quanto vale? Quanto (e quando) serve? Quando (ou quanto) significa? Na presente exposição, Alejandro Lloret, Cecilia Walton, Dudu Malzone, Gabriel Nehemy e Leka Mendes convidam a um olhar detido sobre imagens ambíguas e enigmáticas que resistem à observação apressada. Não se entregam de maneira instantânea, nem tampouco de uma única vez.

     

    São da ordem da convivência: imagens para conviver, que revelam novos sentidos a cada encontro. São como obras de ficção. Em um livro de não-ficção, espera-se encontrar a realidade descrita fidedignamente. Porém, como se sabe, qualquer enquadramento do real é enganoso, por ser sempre um ponto de vista. Construído. Fabricado. Já na literatura ficcional, o leitor sabe estar diante de um mundo imaginário; espera encontrar ali uma narrativa que não corresponde a pessoas ou situações reais; mas, como dizia Virginia Woolf, “é mais provável que a ficção contenha mais verdade do que o fato”. Fabricando realidades inexistentes, o artista chega mais perto do real. E assim ocorre com as imagens de Obras de Ficção.

     

    A pesquisa de Leka Mendes, por exemplo, parte de fotografias feitas por ela em museus de história natural, zoológicos, aquários e parques artificiais. Algumas das imagens são apropriadas – um slide do avô, uma imagem do parque aquático Tropical Island Resort, em Krausnick, na Alemanha, encontrada na internet. Todas as fotos são equalizadas por meio da impressão em preto-e-branco sobre papel algodão. Em seguida, as imagens são submetidas a diversos banhos em bandejas com tinta acrílica, como em um processo de revelação tradicional – substituindo o processo químico por um procedimento pictórico. O controle limitado que a artista tem da fixação de camadas de cor no papel, aliado a um aprimoramento, ao longo de quase dois anos, desta técnica que ela chama de “pós-relevação”, resulta em um sofisticado discurso acerca da artificialidade.

     

    Artificialidade que está tanto nas imitações de natureza retratadas nas fotografias quanto no efeito “envelhecido” que Leka imprime às imagens, assim como em certa gestualidade fantasmagórica que envolve em névoa estas fotopinturas misteriosas. Um fascínio semelhante permeia a obra de Alejandro Lloret. “Falseando provas da realidade”, como define o artista, uma paisagem ficcional é construída por meio da “costura” de fotografia e pintura. Aqui, as duas linguagens não se misturam à maneira lírica e líquida das obras de Leka, mas de forma sólida, construída como um texto em prosa na tecitura da imagem. “Enxergo a fotografia e a pintura como um sujeito olhando para o outro. Cada uma carrega uma ‘carência de ser’, no sentido ontológico; é preciso que elas indaguem uma a outra para que o significado surja da interação”, explica Lloret.

     

    A convivência entre sujeitos ocorre, na exposição, tanto nesta acareação entre fotografia e pintura das obras de Leka e Alejandro quanto na coexistência sobre uma mesma superfície de diferentes “maneiras abstratas”, nos trabalhos de Gabriel Nehemy e Eduardo Malzone. Na obra Éte (2016), de Nehemy, por exemplo, uma cortina de escorridos de tinta dificulta a visibilidade da pintura de campos de cor que está por trás. Em suas outras telas, convivem intervenções gestuais com geometria; linhas com formas orgânicas; estruturas de preenchimento de cor com vazios inacabados. A presença de algum tipo de “imagem”, aqui, é a da abstração tornada imagem, no sentido de um repertório de formas de abstração consagrado ao longo de um século de tradição, no mínimo, considerando o Quadrado Preto de Malevich como referência.

     

    O mesmo acontece nas pinturas de Malzone. Um sistema ordenado de faixas verticais coloridas funciona como velatura da construção abstrata por trás. Não se trata, porém, de uma velatura strictu sensu, uma vez que as listras não têm transparência. O artista esconde a pintura do fundo deixando, entre as faixas, frestas mais ou menos estreitas, por onde se entrevê o que ele denomina de “rompante caótico”. “É um revestimento, um verniz para esse caos que eu vivo, que eu sou”, explica Malzone. A escolha de cores primárias acentua o aspecto de revestimento, aludindo à sedução das cores de embalagens de produtos consumidos cotidianamente. É como se a paleta do mundo banal do consumo – de coisas e de imagens – impregnasse o olhar do pintor, que, em resposta, desconstruísse esta paisagem diária por meio de uma metapintura. “As imagens me cansam”, confessa o artista. A sua pintura transmuta a fadiga generalizada das imagens.

     

    É interessante perceber como esta lógica de esconder e evidenciar embasa o trabalho de todos os artistas de Obras de Ficção. Leka Mendes tira partido do que a tinta pode velar ou revelar das fotografias que elege. Alejandro Lloret mascara a realidade de suas “paisagens” para exibir um concentrado de ficção mais verdadeiro do que o lastro de imagens da Pedra da Gávea ou de uma cachoeira que sequer existe. “Sou lançado pelo desejo e tomado pela angústia de incompletude”, revela ele acerca de suas fabricacações do real. E não é diferente no processo de Cecilia Walton. Ali, onde qualquer ideia sobre o mundo das imagens pode parecer ausente, a artista está também jogando com o conceito de representação. A aparente negação da imagem convida a um olhar mais detido: que objetos são estes? Eles falam de pintura – chassis, telas, linho –, mas não exatamente.

     

    São pintura, de certa forma, porque são constituídos de todos os elementos que se costuma encontrar em uma pintura convencional. Mas qual a imagem que estas “pinturas” carregam? Talvez a “imagem” do enquadramento das imagens. A contemporaneidade nos acostumou a ver tudo por meio de uma espécie de quadro: a moldura da obra de arte; a tela do computador; o monitor de TV ou do celular; o quadrado do Instagram que já vem como default e faz com que tudo o que vemos tenha de caber ali; o visor da câmera fotográfica etc. Quadros dentro de quadros dentro de quadros. O mundo das imagens que colonizou por completo nossa vida e nosso imaginário é totalitário e implacável.

     

    As obras de Cecilia nos convidam a olhar além do quadro. Ou mais profundamente dentro dele. Um “chassi” em forma de trapézio; uma tela rasgada da qual restam apenas as bordas, prenhes de informação; o linho esticado – para receber a sagrada intervenção do artista – distorcido, assimétrico, deixando metade do “espaço ideal da pintura” vazado, vazio, vago. Um convite, sobretudo, a vagar pela exposição de forma mais crítica. Quanto tempo dura uma imagem? Quanto vale? Quanto (e quando) serve? Quando (ou quanto) significa? Elas significam na medida em que lhes emprestamos significados. Não são paisagens, nem abstrações ou arte conceitual estes objetos que nos vemos nesta coletiva. Não apenas. São obras de ficção onde é mais provável que encontremos a verdade, que nos olha de volta.

     

    Juliana Monachesi

    junho de 2016

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